Desde a execução do chefão do tráfico na fronteira do Brasil com o Paraguai, Jorge Rafaat, em junho de 2016, trucidado por rajadas de metralhadora mesmo estando dentro de um luxuoso veículo blindado, o modo de agir dos executores — e sobretudo o armamento usado naquele ataque — se tornou objeto de desejo das quadrilhas brasileiras. No começo do ano passado, durante o ataque a um carro-forte em Vacaria, na Serra, peritos comprovaram que o método chegou ao Rio Grande do Sul. Agora, no início deste mês, a principal prova apareceu com a primeira apreensão de uma metralhadora .50 no Estado, depois de outro ataque a carro-forte, desta vez, em Bento Gonçalves.
— É praticamente um mini-canhão. O potencial destruidor deste armamento é terrível, com um controle difícil, que só pode ser manuseado por alguém com treinamento militar. Por isso é tão restrito às Forças Armadas — explica o especialista em defesa e editor do Portal Defesanet, Nélson During.
Apreendida pela Brigada Militar logo após o cerco que resultou nas prisões dos primeiros três envolvidos no ataque, já se sabe que se trata de uma Browning .50, conhecida como M2, fabricada nos Estados Unidos. Os peritos estão em fase inicial de análise do armamento, portanto, ainda não é possível saber se é uma arma nova ou se teve peças trocadas em relação à fabricação. A polícia ainda investiga, também em fase inicial, a origem da metralhadora, possivelmente desviada de alguma força armada e trazida de fora do Brasil.
Segundo o delegado Joel Wagner, que investiga o roubo ao carro-forte pela Delegacia de Roubos, do Deic, é cedo para determinar a origem do armamento. Segundo ele, a polícia sabia, ao menos desde o início de 2017, que uma metralhadora .50 era usada por pelo menos uma quadrilha especializada no Estado.
— É claro que estávamos atrás de pistas sobre esta arma, mas não tínhamos informações mais claras sobre o caminho dela. Agora, vamos investigar os presos e possíveis conexões que possam ter — aponta o delegado.
O ataque de Bento Gonçalves pode ter sido o terceiro na Serra com o uso da metralhadora .50 no Rio Grande do Sul. Conforme a Polícia Federal, nas mãos de traficantes de armas no Paraguai, este armamento não custa menos de R$ 150 mil para os criminosos brasileiros. Em eventuais repasses dentro do país, investigações feitas no Rio de Janeiro mostraram que o custo chega a dobrar.
— Foi uma arma desenvolvida na Segunda Guerra Mundial, como sucessora da .30. Tinha o objetivo de abater aeronaves e conter blindados. No Exército Brasileiro, é arma dos batalhões de infantaria, usada em blindados — explica Nélson During.
A metralhadora .50 também é empregada na defesa de unidades militares. Um disparo é capaz de atingir um alvo a 1,5 quilômetro com relativa precisão. Para que se tenha uma ideia, um revólver calibre 38 tem precisão máxima de cem metros.
NÉLSON DURING - Especialista em defesa
É praticamente um mini-canhão. O potencial destruidor deste armamento é terrível.
Carro adaptado para atirar
Um armeiro gaúcho, representante da fabricante norte-americana e que prefere não ser identificado por questões de segurança, garante que rajadas dessa metralhadora têm o potencial de derrubar prédios, aeronaves e virar veículos blindados. Ao ser questionado sobre o uso da M2 em um ataque a carro-forte como o do começo do mês, não tem dúvida:
— É exagero de força, se formos considerar o potencial dessa arma. Talvez fosse para mostrar realmente o potencial e amedrontar as vítimas, mas era um risco para os próprios criminosos. Ao ser disparada, se não for manuseada por alguém com treinamento específico e não estiver muito bem afixada, o risco de causar danos aos atiradores é muito grande. Não é arma de precisão, não tem mira. Ela atinge o alvo pela força, e o recuo desta metralhadora é muito potente, poderia até mesmo virar o veículo usado pelos bandidos — analisa.
Assim como na execução de Rafaat, nos ataques no Estado, os criminosos adaptaram carros comuns para a missão. No caso de Bento Gonçalves, uma Tucson teve o banco traseiro retirado e nessa parte uma barra de ferro foi instalada para afixar o tripé da metralhadora. No vidro traseiro, uma chapa metálica deixava aberta apenas uma espécie de escotilha, por onde saía o cano de grosso calibre.
A diferença fundamental em relação ao ataque no Paraguai está na forma de usar o armamento. No roubo em Veranópolis, no começo de 2017, foram recolhidas duas cápsulas de .50. Em Bento Gonçalves, a suspeita da polícia é de que não mais do que três disparos tenham sido feitos com a metralhadora. Todos pontuais, visando a parte frontal do carro-forte, onde está o motor.
— Os criminosos têm o objetivo de parar o carro-forte. Um único disparo da .50 contra a estrutura que protege o motor desse tipo de veículo é suficiente para causar o estrago e não permitir ao veículo seguir. Se fizessem uso da rajada da metralhadora, além de atravessar o carro-forte, correriam risco até mesmo de perder o dinheiro, de sofrer com o recuo do armamento e certamente perderiam tempo, o que é essencial nesse tipo de roubo. Quem está fazendo isso, certamente tem conhecimento técnico — avalia During.
Conhecimento militar
Descobrir quem atirou com a metralhadora .50 nos ataques a carros-fortes é outro desafio à polícia. De acordo com o delegado João Paulo Abreu, da Delegacia de Roubos, do Deic, a investigação ainda não chegou a essa resposta. Ele afirma que nenhum dos quatro presos até o momento — há suspeita de que outros quatro tenham escapado — é ex-militar.
JOÃO PAULO ABREU - Delegado do Deic
É uma arma de manuseio complexo, que exige conhecimento prévio. Mas não necessariamente precisa ser militar ou ex-militar. Pode ser alguma pessoa que recebeu este conhecimento de outras pessoas. Nada pode ser descartado a essa altura da investigação.
O armamento é mantido em local sigiloso pelas autoridades estaduais. E o destino da metralhadora ainda não foi definido. É que a importância das perícias na arma provavelmente ultrapasse o processo que analisará o ataque de Bento Gonçalves. Segundo o delegado Abreu, a arma pode ter sido a mesma usada em ataques em outros Estados:
— A arma será mantida em local seguro à disposição da polícia e dos peritos enquanto houver interesse probatório.
Depois, o provável destino a ser determinado pela Justiça seria as Forças Armadas. Mesmo que a legislação permita que forças policiais possam solicitar as armas apreendidas, inclusive de calibre .50. O problema, segundo o delegado, é o tipo de arma. A metralhadora não é adequada às polícias.
Segundo o armeiro, a restrição à .50 é tamanha, que os representantes sequer são autorizados a negociá-las. A venda deste tipo de calibre é feita diretamente em negociações da fabricante com as forças armadas de cada país interessado. Como um dos órgãos de defesa aptos a usar a metralhadora, o Exército Brasileiro não revela quantas existem em suas unidades, nem onde estão empregadas. As munições apreendidas após o ataque de Vacaria, em 2017, tiveram a comprovação de que eram de origem nacional. O material apreendido no último ataque é periciado com total sigilo. Alegando questões de segurança, a direção do Instituto-Geral de Perícias (IGP) diz que só se manifestará sobre o armamento com a conclusão do laudo.
Ficha técnica
A metralhadora Browning .50
Alcance de tiro com precisão: 1,5km
Cadência de tiros: 400 a 600 tiros por minuto
Capacidade do carregador: 100 a 200 projéteis
Comprimento: 1m65cm*
Peso: 38kg
Como é usada: por forças de infantaria, de defesa de bases e antiaéreas. Essa metralhadora é a arma geralmente vista na parte de cima dos blindados. Uma variação delas também é usada em navios e helicópteros de guerra.
* O tamanho do cano é determinante para o alcance da arma. Para uso antiaéreo, o cano é maior.
Fonte: GaúchaZH