Atualmente, menos de 60% dos cargos para auditores fiscais do trabalho estão ocupados no país e a verba para combater a prática encolheu mais de 40% - SIT/Ministério da Economia.
Com 92 nomes, o governo federal atualizou a chamada "lista suja" do trabalho escravo, que inclui empregadores envolvidos com a prática criminosa no país. A relação agora tem 1,7 mil trabalhadores resgatados em 19 estados brasileiros. Com 24 nomes, Minas Gerais é o estado com mais registros.
A lista foi criada pelo extinto Ministério do Trabalho e ficou suspensa por três anos até o Supremo Tribunal Federal reafirmar a constitucionalidade da publicação. Hoje, ela é considerada uma referência no combate a esse crime pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
"Utiliza-se a lista suja para o gerenciamento de riscos socioambientais, utiliza-se a lista suja para verificação de cadeias produtivas. Para verificar se o produto que vocês estão comprando, ou o fornecedor que vocês estão usando, se ele utilizou desta prática, que
é considerada uma das práticas mais odiosas de todo o mundo, que escraviza mais de 40 milhões de pessoas", aponta Leonardo Sakamoto, jornalista especializado na investigação de cadeias produtivas.
Ao todo, foram incluídos 19 empregadores no último cadastro. Eles foram responsáveis por submeter 231 pessoas à condições de trabalho análogas à escravidão.
Por conta das medidas sanitárias impostas pela pandemia, porém, a notificação dos infratores e a análise da defesa dos aliciadores estão suspensas por conta da Medida Provisória 927/2020 - o que faz com que empregadores que se utilizam da prática fiquem de fora da lista.
"Ela [lista suja] é considerada tanto um exemplo global, como um inferno para os maus empregadores. Eles movem ações contra a lista suja, essa própria decisão do STF foi em decorrência de uma ação movida pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliários, a Abrainc. Uma série de outras instituições, entre elas ruralistas, já moveram ações. Exatamente porque ela garante transparência", explica Sakamoto.
Escravidão na colheita do alho
No Sul do país, entre fevereiro e março, uma operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério da Economia resgatou 18 trabalhadores.
A última ação ocorreu na colheita do alho, no município de Campestre da Serra, interior do Rio Grande do Sul. O grupo havia chegado ao local em outubro de 2020.
A defensora Ana Paula Villas Boas, que participou da operação, explica que, até o resgate, os trabalhadores viviam em um alojamento precário, não haviam recebido pagamento e eram ameaçados pelos aliciadores - que chegaram a recolher seus documentos.
"Eles tinham armas de fogo, a gente sabia. Na verdade foram apreendidas as armas logo no início da ação. Essas armas eram usadas para intimidar os trabalhadores, quando eles queriam voltar para casa. Então, eles eram coagidos fisicamente também a se manter no local", afirma a defensora.
Além da participação da Defensoria Pública da União (DPU), a ação no Sul do país contou com representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Polícia Federal e do Ministério da Economia.
Sucateamento e pandemia
Em 2020, no governo de Jair Bolsonaro, o desmonte das estruturas de fiscalização, aliado às restrições impostas pela pandemia, não impediu que 942 trabalhadores fossem resgatados.
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato no ano passado já haviam alertado que a falta de fiscalização e o acirramento das desigualdades poderiam tornar as pessoas mais suscetíveis ao aliciamento por parte de empregadores.
Somente no estado de Santa Catarina, a diferença do número de trabalhadores resgatados antes e depois da pandemia é alarmante. Em 2019, foram cinco trabalhadores. Em 2020, o número salta para 66. Os números estão expostos no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
Atualmente, menos de 60% dos cargos para auditores fiscais do trabalho estão ocupados no país e a verba para combater a prática encolheu mais de 40%, tornando-se a menor dos últimos 10 anos. O último concurso para a categoria foi realizado em 2013, ainda na gestão da presidenta Dilma Rousseff (PT).
"O corte de verbas pelo Ministério da Economia é inadmissível, porque se trata de uma política que é prioritária. E que diz respeito à tutela de um valor muito caro à Constituição, que é a dignidade da pessoa, que é um princípio, que é um objetivo da República. Não tem forma mais perversa para se afrontar esse direito à dignidade do que a escravidão contemporânea. Então a escolha política ela só revela, sinaliza, as prioridades duvidosas desse governo", analisa Villas Boas.
Reforma trabalhista
A defensora considera que a redução das fiscalizações pelo Ministério da Economia em 2020 se soma a um movimento anterior de precarização das relações de trabalho no Brasil. Villas Boas aponta como um marco a reforma trabalhista, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB)
"A terceirização irrestrita e tudo que tornou o trabalho fragmentado, uberizado, precarizado. A pandemia por tornar os trabalhadores ainda mais vulneráveis, por aumentar o desemprego, aumentar a precarização, deveria incentivar um movimento contrário à flexibilização, de mais recrudescimento, de mais controle", analisa."A terceirização irrestrita e tudo que tornou o trabalho fragmentado, uberizado, precarizado. A pandemia por tornar os trabalhadores ainda mais vulneráveis, por aumentar o desemprego, aumentar a precarização, deveria incentivar um movimento contrário à flexibilização, de mais recrudescimento, de mais controle", analisa.
De acordo com o artigo 149 do código penal, quatro elementos podem definir a escravidão contemporânea: condições degradantes, as jornada exaustivas, o trabalho forçado e a servidão por dívida.
No Brasil, a prática criminosa predomina nas cadeias produtivas de commodities agrícolas, onde é comum o domínio de empresas multinacionais nas etapas mais lucrativas da produção. Desde 1995, mais de 56 mil trabalhadores de situação análoga à escravidão foram resgatados no país.
"Quanto mais se resgata trabalhadores em situação análoga a de escravidão, além de garantir para eles a liberdade, além de limpar a cadeira produtiva, possibilitando um diferencial no comércio internacional, também temos um aumento na arrecadação, uma vez que quem utiliza trabalho escravo não está arrecadando impostos", aponta Sakamoto.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério da Economia, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.
Fonte: Brasil de Fato