Em São Paulo, um garoto de 17 anos foi amordaçado, despido e chicoteado após ser surpreendido tentando furtar chocolate. Em Salvador, tio e sobrinho foram mortos após serem flagrados furtando carne. Em Porto Alegre, um homem de 40 anos foi espancado até a morte após discutir com funcionários.

Todas essas pessoas foram vítimas de um exército clandestino formado por seguranças irregulares que atuam sem um controle efetivo da Polícia Federal. Esse contingente é estimado em cerca de 600 mil homens e mulheres, segundo os dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Somando essa segurança clandestina com os vigilantes registrados regularmente —496 mil profissionais —, esse exército privado chega a 1,1 milhão de pessoas. O número é superior à soma de todos os integrantes das forças de segurança do país, atualmente estimada em 772 mil pessoas.

Especialistas ouvidos pela Folha são unânimes em dizer que o crescimento desse mercado irregular ocorre porque, entre outros motivos, a legislação que regulamenta o setor, publicada há quase 40 anos (Lei 7.102/1983), está desatualizada e favorece quem atua de maneira irregular.

A norma atual não prevê, por exemplo, mecanismos para que a Polícia Federal possa punir empresas irregulares. Uma pessoa jurídica flagrada atuando de maneira clandestina pode, no máximo, ser fechada pelos policiais, mas não é multada e os responsáveis não respondem a crime.

"A PF não tem nenhum instrumento para multar. O que a PF faz, basicamente, é recolher os uniformes e equipamentos, tudo que estiver vinculado à prestação de serviço. É isso que a PF faz. A pessoa vai ficar com o nome registrado na base da PF, e, se ela quiser regularizar a empresa, vai ter algum problema", afirma Cleber Lopes, pesquisador do Fórum e especialista em segurança privada.

Professor do departamento de ciências sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do LEGS (Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança), Lopes foi responsável pela análise dos dados do Fórum e conseguiu chegar aos 600 mil seguranças irregulares cruzando informações da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) e da Polícia Federal.

Como as declarações à Pnad são feitas de forma espontânea, durante visitas em domicílios, ele calcula que o tamanho desse setor clandestino pode ser ainda maior. Isso porque foi baixa a quantidade de policiais que admitiram fazer bicos de segurança (cerca de 0,5%).

A taxa é considerada irreal pelos especialistas porque muitos policiais, em especial PMs, participam de atividades de segurança privada nos horários de folga. Os dados não são considerados confiáveis.

De acordo com André Zanetic, doutor em ciência política e especialista em dados e estatística do Programa Fazendo Justiça, as empresas irregulares costumam recrutar policiais da ativa e, também, pessoas sem qualificação para esse trabalho.

"Vigilantes demitidos de empresas regulares, pessoas que foram reprovadas em exames da Academia de Polícia, agentes que foram expulsos de órgãos de segurança pública, e mesmo pessoas desempregadas, sem qualificação para atuar no setor", afirmou ele.

Zanetic diz, ainda, que a situação coloca em risco as pessoas que frequentam os estabelecimentos nos quais atuam esses seguranças clandestinos. "Porque é comum ações com uso extremado da força, inclusive com ocorrências de homicídios causadas por despreparo de agentes no uso de armas de fogo, entre outras ocorrências que poderiam ser evitadas".

Uma das principais diferenças entre a segurança regular e a irregular é a triagem dos profissionais: os vigilantes oficiais recebem treinamento, passam por exames clínicos e não podem ter antecedentes criminais ou serem alvo de inquéritos, sob o risco de serem demitidos.

"Dos clandestinos, não temos a menor noção de onde eles vêm. Nesse universo clandestino, como a Polícia Federal não regula, não controla, a gente não faz ideia de como eles se relacionam com uma zona cinzenta, que é o envolvimento com o crime organizado", diz Lopes.

Parte dos seguranças irregulares atua de forma totalmente informal. Há também casos de empresas formais que oferecem prestação de serviço de segurança, mas que, oficialmente, estão inscritas na junta comercial com outro propósito —serviço de limpeza, por exemplo—, o que também é irregular.

As empresas de segurança e os funcionários precisam estar inscritos na Polícia Federal, incluindo as equipes próprias de estabelecimentos comerciais, a chamada vigilância orgânica.

No caso da morte de João Alberto Silveira Freitas, 40, espancado em um Carrefour de Porto Alegre, em 2020, a empresa de segurança estava registrada regularmente, mas os seguranças que participaram das agressões, não estavam, segundo a Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores). Um deles seria policial e, o outro, estava com documentação vencida.

"Eles [clandestinos] estão trabalhando em quase todos os lugares. Menos, talvez, no serviço público. Menos, não quer dizer que não tenha. No comércio é uma praga. Aí, estamos falando de tudo. Das grandes redes de supermercado ao comercinho de rua. Você passa lá e está o coletinho de apoio", disse José Boaventura Santos, presidente da CNTV (Confederação Nacional dos Vigilantes e Prestadores de Serviço).

Nas redes de supermercado, explica ele, é comum a contratação de parte de vigilantes regulares para alguns postos, mas, a maior parte da segurança ser feita por profissionais irregulares. "A proporção é, mais ou menos, 20% de vigilância legal, e 80% vigilância clandestina, ou irregular, nessas redes de supermercado", afirmou o sindicalista.

Para a Fenavist, os números do Fórum, sobre a quantidade de trabalhadores clandestinos, são até conservadores porque, conforme estudos feitos, esse grupo de clandestino já supera 1 milhão de pessoas e está crescendo, ao contrário do que ocorre com o setor formal.

De acordo com o vice-presidente jurídico da federação, Jacymar Daffini Dalcamini, o mercado de segurança privada movimenta cerca de R$ 36 bilhões ao ano. Ele estima que o mercado irregular tenha cifras semelhantes. Ainda segundo ele, a concorrência desleal coloca em risco o funcionamento de empresas que seguem a lei.

"A PM não tem braço para atuar em tudo. Então, a segurança privada funciona como longa manus, um braço estendido, da segurança pública. Do outro lado, a segurança clandestina é um caminho para milícias, se aproxima do crime", afirma Dalcamini.

Ainda de acordo com ele, uma das grandes preocupações do setor é essa ligação de empresas de segurança com o crime organizado. Algo visto em parte do Rio de Janeiro, e, também, na Bahia, no caso dos seguranças que acionaram criminosos para dar cabo de suspeitos de furto, segundo ele.

"Isso muito perigoso. Eu tenho transitado no Rio, há uma preocupação da sociedade carioca, por conta disso. E pensar que isso pode estar se espalhando para o Brasil todo, imagina aonde a gente vai parar. Daqui a pouco vamos ter um estado paralelo preparado para o enfrentamento do estado regular", disse.

Folha solicitou à Polícia Federal indicação de algum delegado que pudesse falar sobre fiscalização de empresas regulares e irregulares, mas o pedido não foi atendido. Um pedido encaminhado à equipe de Brasília, não foi respondido. Em São Paulo, o pedido foi negado alegando implicações da lei eleitoral.

Em resposta à reportagem, a rede Carrefour informou ter transformado seu "modelo de prevenção, internalizando o time que atua dentro das lojas, investindo mais em treinamentos que ocorrem anualmente e no uso de câmeras corporais nos uniformes".

Ainda segundo a rede, foi adotada uma "política de tolerância zero a violência e a discriminação com protocolos inovadores de gestão de conflitos. "O novo modelo de segurança implementado, é pioneiro no Brasil e reforça diretrizes de inclusão e respeito". 

Fonte: Folha de S. Paulo